Esta matéria faz parte da nossa cobertura contínua dos eventos do Julho Negro, e da série de matérias do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas. Para contribuir com essa pauta, clique aqui.
“A ADPF [das Favelas] veio como um fôlego para todo mundo, diminuindo o número de mortos”, disse Patrícia Oliveira, do movimento de favelas, da Rede de Comunidades e Movimento contra a Violência e Mãe de Manguinhos. Ela foi uma das convidadas da live “ADPF 635: Incidência Política e Lutas Sociais“, uma das atividades do VI Julho Negro*, no dia 29 de julho. Com participações de Daniela Fichino, da Justiça Global; Beatriz Vidal, Iniciativa e Direito à Memória e Justiça Racial/IDMJR; Juliana Farias, pesquisadora da Unicamp; e mediação de Giselle Florentino, da IDMJR, a mesa teve como objetivo lembrar o processo de construção da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 635, ou ADPF das Favelas, e sua incidência política e importância para as lutas sociais.
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Juliana Farias foi a primeira convidada a falar. A pesquisadora contou que, depois da academia, passou a olhar o mundo pela lente acadêmica e contou sua experiência durante os dois dias de audiência pública sobre a ADPF no Supremo Tribunal Federal (STF), quando “a mais alta corte do país parou para escutar figuras como Eliene de Manguinhos que mostrou o próprio teto da [sua] casa” ao Supremo Tribunal Federal. Juliana ainda explicitou que nem todos os ouvidos na audiência da ADPF estão do lado dos direitos humanos e dos movimentos de favela. Segundo ela, a fala de alguns foi vergonhosa, ao dizer, por exemplo, que “acabar com a polícia é a cloroquina da esquerda”. Ela apontou a vitória na corte como fruto da luta dos movimentos sociais: as mães negras de favela são as verdadeiras especialistas e conseguiram de fato suspender operações policiais nas favelas do Rio durante a pandemia, exceto em circunstâncias “absolutamente excepcionais”.
Patrícia Oliveira ressaltou a importância da ADPF 635 para o engajamento de moradores de favela: “Quando os moradores começaram a saber que havia uma ADPF em tramitação, muitos começaram a se engajar. Tiramos muitos posicionamentos em conjunto. A gente sempre se articula conjuntamente”. Patrícia contou que o atual procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro, Luciano Oliveira Mattos de Souza, assumiu uma postura autoritária, não ouvindo e até interrompendo mulheres durante as reuniões. Ela também falou de operações policiais vingativas a reboque da participação dos movimentos de favela nas discussões da ADPF.
“No dia da audiência, falei que muita gente ali estava com medo de sofrer repressão. E teve! Porque no mesmo dia teve tiro no Borel, em Manguinhos, na Maré… foi uma retaliação, sim! Ou seja, aqui quem manda é a Polícia Civil, a Militar e não o ministro do Supremo.”
Patrícia ainda apontou a falha do Ministério Público como órgão de controle externo, como guardião da lei e sobretudo na garantia da segurança dos moradores e do sigilo da fonte que denuncia a atuação policial fora da lei: “É preciso ter muito cuidado com aquele número de plantão do Ministério Público que anda sendo divulgado. Durante reunião com o promotor Reinaldo Lomba, foi dito que os denunciantes podem virar testemunha mais à frente ou ser processados! Será que essa pessoa [que denuncia] quer ser testemunha?” Será que essa pessoa se sentiria segura? É bastante provável que não”.
Redução e Aumento da Letalidade Policial
Há cerca de um ano foi deferida pelo STF a ADPF 635. A ação foi ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) com o objetivo de que fossem reconhecidas e evitadas as graves e crescentes ações letais da polícia do Estado do Rio de Janeiro. Daniela Fichino, coordenadora da Justiça Global, ressaltou que, apesar de ter sido ajuizada pelo PSB, a ADPF vem de um processo longo a partir da luta de movimentos de favelas, movimento negro, mães e familiares de vítimas do Estado.
Durante sua fala, Beatriz Vidal, assessora jurídica da Iniciativa e Direito à Memória e Justiça Racial, apontou a grande queda da letalidade policial nos quatro primeiros meses no início da vigência da ADPF seguido imediatamente pelo crescimento do número de operações policiais:
“É bastante claro que nos primeiros quatro meses, após a decisão do ministro, que foi em junho de 2020, houve uma queda brusca. Isso já é comprovado, já têm estudos… do GENI que mostra que houve uma queda bastante clara nos assassinatos e nas operações nas comunidades do Rio de Janeiro. Após essa queda, a gente vê uma elevação extrema, que foi quando a Polícia Militar e a Polícia Civil decretaram que tudo seria excepcionalidade, ou seja, tudo teria justificativa que era excepcional, que era um caso à parte. Por conta disso, as operações começaram a ocorrer e por conta disso os assassinatos. Então, assim a gente vê uma grande queda e após os quatro primeiros meses uma grande elevação.”
A Polícia Nunca Matou Mais
Mesmo com a decisão do STF e da pandemia, forças policiais brasileiras nunca mataram tanto quanto em 2020. A informação é do Anuário de Segurança Pública, que registrou um aumento de 190% desde a primeira publicação em 2013. Segundo a pesquisa organizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pessoas negras são as principais vítimas da letalidade policial, correspondendo a 78,9% das 6.416 pessoas mortas pela polícia em 2020. Isso apesar de que no Brasil, 56,3% das pessoas se declaram negras, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) contínua do IBGE, de 2019.
O ano de 2021 não está sendo diferente. Apenas no primeiro semestre, foram registrados cerca de 15 tiroteios por dia na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com base nos dados do Fogo Cruzado. Em apenas em um dia, 28 pessoas negras foram mortas no Jacarezinho, em plena luz do dia, durante uma ação policial, na mais letal chacina da história no Rio. Esse massacre foi promovido pelo Estado, quase um ano após entrar em vigor a liminar do STF proibindo operações policiais em favelas do Rio.
“A partir do momento em que uma ordem do STF não é acatada, a quem devemos recorrer?”
Esse foi o questionamento de Patrícia Oliveira durante a live. Ela ainda alertou para os arsenais de guerra que estão sendo adquiridos legalmente pelas polícias e que mais cedo ou mais tarde vão ser usados contra o povo de luta. Patrícia defendeu a importância de se aliar movimentos de favela e academia. E fechou falando:
“Se só os favelados lucrassem com o tráfico não existiria mais favela.”
Negligência do Ministério Público do Rio de Janeiro
“A gente vê que o Ministério Público não é favorável à divulgação de relatórios de mortes causadas por operações policiais”, apontou Beatriz Vidal, focando na negligência do MP do Rio e ressaltando o papel do Ministro Edson Fachin, o primeiro a deferir a ADPF635.
“Após o massacre do Jacarezinho, houve uma decisão da Polícia Civil do Rio decretando sigilo de cinco anos sobre todos os atos que ocorreram e contrariando a Lei de Acesso à Informação. A partir disso, teve a decisão do Ministro Edson Fachin para esse decreto deixar de existir, que todos os fatos que ocorressem durante a operação fossem tornados públicos e que o MP do Rio investigasse o crime. Nunca vai ser o bastante, mas… um ministro tentando modificar essa situação já é um avanço.”
Daniela Fichino concluiu: “O Ministério Público não tem cumprido seu papel”. Daniela questionou a fragilidade dos plantões do MP do Rio de Janeiro para a manutenção da vida do denunciante, além da má vontade política. Segundo ela, “é a omissão que custa vidas”. Ressaltou ainda as incidências da ação, como a participação de mães, coletivos, movimentos e demais entidades na audiência pública no Supremo.
Daniela também ressaltou o que o período de suspensão das operações policiais devido à ADPF das Favelas revelou:
“A principal conquista da ADPF das Favelas foi a suspensão das operações policiais durante a pandemia… com a redução, após a liminar do Ministro Edson Fachin, não só da letalidade policial, mas dos crimes contra a vida e contra o patrimônio. O que também faz cair por terra, um argumento muito utilizado, mas absolutamente equivocado… perverso e com um uso político voltado para instrumentalizar políticas de extermínio, que é o argumento que as operações são feitas para garantir a segurança pública. Essa é uma mentira deslavada… ela é a operacionalização de uma política de extermínio.”
Assista à Live “ADPF 635:Incidência Política e Lutas Sociais” Aqui:
Sobre a autora: Camila Fiuza é jornalista formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Oriunda da escola pública, integra o movimento Mães de Maio do Nordeste. Mulher negra, periférica e ativista de direitos humanos e antirracismo, contribuiu para rádios comunitárias e passou pela Record TV Itapuã e rádio Band News FM em Salvador.
Sobre a artista: Anna Paula Rodrigues é designer e ilustradora freelancer, formada em desenho industrial pela UFRJ. Anna Paula—que atua com a questão antirracista quanto a estética e beleza—trabalha como designer gráfica em diversas ONGs do Rio de Janeiro.
Esta matéria faz parte da série de matérias do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas. Para contribuir com essa pauta, clique aqui.
*O VI Julho Negro tem como objetivo fortalecer a luta contra a militarização, o racismo e o apartheid no Brasil e nos países do Sul Global. É uma articulação internacional organizada pelos seguintes movimentos e organizações de favelas e aliadas do Estado do RJ: Rede de Comunidades e Movimento contra a Violência, Movimento Moleque, Mães de Manguinhos, Rede Nacional de Mães e Familiares Vítimas do Terrorismo do Estado, Movimento Independente Mães de Maio, Raízes em Movimento, Maré 0800, Iniciativa e Direito à Memória e Justiça Racial/IDMJR, Instituto de Defesa da População Negra/IDPN, Fórum Social de Manguinhos, Fórum de Juventudes RJ e Frente Estadual pelo Desencarceramento RJ, Justiça Global, Instituto Pacs e Fase RJ.