Em Campo Grande, Mulheres Afro-Indígenas Empreendedoras Atendem Chamado Ancestral e Fundam o Instituto As Josefinas, Seguindo os Passos de Dona Josefa Silva Nascimento, Avó Ancestralizada

Roda de Conversa As Josefinas. Foto: Raquel Ribeiro
Roda de Conversa As Josefinas. Foto: Raquel Ribeiro

Esta matéria faz parte da série de Memórias de Potências Faveladas do RioOnWatch, que visa documentar e celebrar a história das favelas do Rio de Janeiro através de relatos e reportagens sobre a memória coletiva em sua luta cotidiana pelo direito a uma vida plena.

Enquanto um território criado para acolher mulheres do bairro de Campo Grande, na Zona Oeste do Rio, o Quintal das Josefinas, espaço facilitado pelo Instituto As Josefinas, pode ser bem definido a partir de dois pilares: aquilombamento—termo que vêm sendo muito utilizados atualmente pelo povo negro e que, entre seus vários sentidos, significar o ato de assumir uma posição contra-hegemônica a partir de um corpo político ou a criação de espaços seguros e de acolhimento para pessoas pretas e grupos marginalizados—e aldeamento—ação de aldear povoado indígena, reunir. Ambos têm sido utilizados para caracterizar esse espaço de acolhida às mulheres de Campo Grande.

Letícia Vilas-Boas, Angel Tamu, Alexia Sant'ana, Preta Poética, Cida e Carla Nascimento. Foto: Raquel Ribeiro
Letícia Vilas-Boas, Angel Tamu, Alexia Sant’ana, Preta Poética, Cida e Carla Nascimento. Foto: Raquel Ribeiro
Memórias de Aira Nascimento. Foto: Raquel Ribeiro
Memórias de Aira Nascimento. Foto: Raquel Ribeiro

Resistindo aos obstáculos que surgiram pelo caminho, Aira Nascimento criou o Instituto As Josefinas, que ela define como um quilombo urbano, aldeia e um extenso quintal, que vem transformando as vidas das mulheres que frequentam o local. Dando seguimento ao legado de Dona Josefa Silva Nascimento, sua avó materna, Aira diz que precisava fazer esse caminho de encontro com a sua ancestralidade e a busca pelo conhecimento de sua história.

“O nome é uma variação do nome de Dona Josefa. A ideia veio primeiro nesse processo de conhecimento da minha história, como mulher negra e também de descendência indígena Potiguara. Fenotipicamente, essa mulher negra, não dá pra esconder, e de traços indígenas, nordestina, moradora do Rio de Janeiro, aqui na Zona Oeste. Moro aqui na Zona Oeste há muitos anos, há mais de trinta anos… e eu sou vivente aqui da periferia, aqui na Zona Oeste há muitos anos, são quarenta e três anos, e a nossa história como mulher negra, do povo preto e do povo indígena é muito apagada. A gente está aprendendo agora a História que a história não conta.

E aí, fui sentindo na pele, passando por racismo estrutural, mas não sabia dar nome. E, em 2016, quando engravido do meu filho, e quando minha avó fez a passagem, foi quando senti mais forte o retorno à minha ancestralidade.” — Aira Nascimento

O Instituto As Josefinas, desde o espaço de entrada, se mostra ser um lugar de acolhimento. A casa, que possui uma ampla varanda na frente, com diversas plantas dá a sensação de estar entrando naquelas casas típicas do subúrbio carioca. Do lado de dentro, a modernidade e a antiguidade se misturam, dando a entender que, naquele local, o passado, o presente e o futuro complementam-se entre si, onde há uma sala de informática, com computadores modernos, e outra sala, onde funciona um ateliê de costura, com máquinas retrô, nos trazendo à memória as famosas costureiras, que eram profissionais imprescindíveis nas ruas dos bairros, nos becos e vielas das comunidades.

Estante de madeira com livros variados e decorada com bibelôs, artesanatos e porta retrato, sofá forrado com tecido de chita colorido, assim também como as cortinas. Quadros por todas as paredes e, para dar aquele toque especial, nada mais retrô do que uma bela cristaleira repleta de louças antigas em uma das salas. O que nos remete às doces lembranças da infância e adolescência na casa da vovó, na qual a cristaleira era um dos móveis passados de geração em geração. O mais bem cuidado pela dona da casa. O espelho do fundo móvel, que refletia as imitações que as meninas faziam das dançarinas dos programas de TV, sonhando em um dia ser uma delas. Uma verdadeira volta ao passado, que faz refletir sobre mudanças da vida, seja de forma abrupta ou sutil, que só nos damos conta quando estamos mais uma vez diante do espelho do fundo da cristaleira.

Após conhecermos o interior da casa, fomos para o famoso Quintal das Josefinas, que não foge à regra, misturando a modernidade e a antiguidade mais uma vez. Paredes decoradas com mais vasinhos de plantas, artesanatos e quadros. Duas mesas, sendo uma delas bem grande, com bancos retangulares, como nos tempos de famílias numerosas em que todos se sentava ao redor para fazer as refeições ou confraternizar. É nela que todas se reúnem para as aulas e as confraternizações, como uma grande família.

Carla Nascimento, Preta Poética e Cida. Sentadas Alexia Sant'ana e Angel Tamu. Foto: Raquel Ribeiro
Carla Nascimento, Preta Poética e Cida. Sentadas Alexia Sant’ana e Angel Tamu. Foto: Raquel Ribeiro

Em uma verdadeira confraternização entre mulheres, por alguns instantes deixam suas preocupações cotidianas do lado de fora da casa para curtirem momentos de tranquilidade e leveza entre elas. Sim, um grupo grande de mulheres reunidas em volta de uma mesa despreocupadas, mesmo que por algumas horas.

Dando início à nossa roda de conversa, começamos com a apresentação das participantes. Umas tímidas, outras nem tanto. Umas falantes e espontâneas, outras falando pouco, algumas não falavam nada, mas, observavam, prestando atenção em cada fala, como se fosse mais uma aula de posicionamento feminino. Pois estavam fazendo jus o direito de usar fala, sem a famosa interrupção masculina, e de silenciar, sem a obrigação de opinar.

Roda de conversa sobre economia criativa. Foto: Raquel Ribeiro
Roda de conversa sobre economia criativa. Foto: Raquel Ribeiro

Abordamos temas como posicionamento social, feminismo, etarismo, entre outros. Quando perguntado de como o Instituto As Josefinas impactou em suas vidas, foram unânimes em dizer que se transformaram enquanto mulheres. Principalmente, sendo mulheres negras, afro-indígenas e periféricas, disseram sentir essa transformação. Também apontam se sentirem acolhidas, pois, nas reuniões, uma dá suporte para outra e, no fim das contas, a casa dá suporte para todas. Uma verdadeira rede de apoio.

“Eu cheguei aqui para fazer um curso de educação financeira. Não conhecia. Nunca tinha ouvido falar da casa… foi minha filha que me indicou. E a partir do dia que botei meu pé aqui, me encantei com esse lugar, me apaixonei e não parei de ir… fiquei acompanhando as redes sociais… e eu vim conhecer o projeto das meninas do quintal de afeto… falei pra Catia que eu gostaria de dar aula de bordado, que se ela precisasse eu estava disponível, e aí, ela me quis. E, desde então, eu estou aqui aprendendo muito também. E o principal que é uma casa do coletivo feminino, que me ajudou absurdamente na minha questão profissional. Eu tenho um ateliê, sou empreendedora, empreendo há 20 anos. Vejo que as oportunidades vão chegando pra gente e o quanto é importante você ter esse suporte de outras mulheres com histórico periférico. Porque você se identifica e aquilo ali é uma riqueza muito grande pra ir seguindo. É um suporte que nem elas têm noção do que é.” — Josy

Professora Josyane de Souza Monteiro conta sua história às Josefinas. Foto: Raquel Ribeiro
Professora Josyane de Souza Monteiro conta sua história às Josefinas. Foto: Raquel Ribeiro
Dona Elizete, aluna do Instituto As Josefinas. Foto: Raquel Ribeiro
Dona Elizete, aluna do Instituto As Josefinas. Foto: Raquel Ribeiro

Dar suporte a mulheres, amparando e apoiando umas às outras, quebrando o estigma de que mulheres competem entre si e não são unidas. Entre um ponto de bordado ou de macramê, as mulheres tocam a roda de conversa, ouvindo histórias de vidas de suas companheiras. Como As Josefinas classificam, as rodas de conversa semanais são sessões de “papo terapia”. Ali é o local onde curam suas dores, relaxam, saem um pouco da rotina diária e reconhecem o potencial de cada uma, e o seu próprio.

“Eu não tinha ideia que sabia fazer essas coisas tão bonitas, tão lindas! Hoje, tô aqui bordando essas maravilhas! Tô muito emocionada! Eu descobri aqui que podia fazer isso tudo!” — Elizete

Muitas contaram, que, mesmo que não seja o dia de suas aulas, vão para poder conversar com as amigas, tomar um cafezinho juntas, compartilhar um lanchinho, preparado e levado por elas mesmas. Disseram que esse espaço é bastante terapêutico e que saem de lá renovadas.

Ao falarem de etarismo, as mulheres de Josefinas se questionaram o que pensavam sobre, se já haviam sofrido ou praticado etarismo. As que sofreram, compartilharam sobre sua experiência e como reagiram a ela. 

“Onde eu trabalhava, eu era a mais velha. É assim; todo mundo acha que sabe mais do que você, que já estamos ultrapassadas, que você não dá conta, até que aparece um pepino e aí a sua experiência conta de uma certa forma. No modo geral, as pessoas nos descartam, nos ignoram.” — Clarice Silva Costa

Uma aluna contou que, após ter retornado de uma licença de um ano por problemas de saúde, seus colegas descartaram sua presença na festa de final de ano da empresa. Não acreditavam que ela bebia e dançava. Se surpreenderam de ver como ela se divertia no evento. A mesma diz que se sentiu ofendida com a atitude dos colegas.

“Quando são jovens é uma coisa, o pior quando são pessoas mais velhas: ‘ué, mas você vai onde seu filho vai?’ Como se eu fosse aquela velhinha que ficasse em casa. Eu não sou assim. Eu passo por isso em vários lugares… Eu já vou fazer 68 anos, mas, pra mim, não tô nem aí… meu filho fala assim pra mim: ‘Alguém paga suas contas? Então, você bota o short que você quiser, bota a roupa que você quiser, vai e acabou’. Ele é o primeiro a me incentivar.” — Maria Aparecida da Silva (Cida)

Etarismo foi um tema que rendeu bastante. Algumas haviam sofrido com etarismo, mas não haviam identificado isto. E até mesmo quem não sofreu quis comentar sobre.

“A gente vai percebendo por quanta coisa passamos… o etarismo é algo que nos não vemos acontecer aqui [no quintal]. A Preta é a nossa diretora, é uma menina. Ela tem vinte e poucos anos… e eu não sinto isso aqui. É lógico que lá fora passo por etarismo, mas não aqui.” — Josy

Para as mulheres do Instituto As Josefinas, a idade é só um detalhe.

“Eu nem lembro a minha idade quando chego aqui… Eu estudo com uma galera muito mais jovem do que eu, e eu falo assim: ‘se eu sou mais velha, vocês têm que me respeitar como mais velha. Eu falo a hora que eu quero’. Inclusive a minha orientadora, ela tem que me ouvir. Se eles me tratam como mais velha, eles têm que me respeitar como mais velha, tenho que ser detentora, eu sou mais velha. Ainda digo assim: ‘eu sou uma preta velha’.” — Carla Nascimento

Outros temas, como machismo, sexismo e misoginia também foram bastante falados na roda de conversa.

 “São coisas que têm que mudar, mas, infelizmente, a mudança ainda é lenta, porque é uma coisa que não é só de fora, é de dentro, é familiar, quando você tá sendo educada, já nasce dali, e você vê que tem que haver mudanças ali dentro, inclusive do machismo. O machismo existe, mas, tem mulheres também machistas. Elas reclamam, mas têm atitudes machistas com as filhas, com os maridos, com os filhos. Elas criam os filhos para repetir aquilo que às vezes elas não gostam pra elas. ‘Como é meu filho’; e aí, elas vêm com aquela coisa de que meu filho tem que ser servido, é meu filhinho, faz tudo pra ele, e aí, ele vai reforçar isso mais a frente com a esposa… Então, é uma coisa muito triste, mas, que vai se mudando aos poucos… Às vezes, você leva uma vida toda pra despertar, e é tao bom quando você desperta. Eu, aos 61 anos, estou me divorciando. Então, quando você desperta, não tem idade, não tem etarismo, não tem machismo, não tem sexismo, porque quando você desperta, aí vida toma um novo rumo.”  — Verônica Fernandes da Costa Amorim

Preta, uma das diretoras do Instituto, afirma que o quintal é um local seguro, onde não há espaço para nenhum tipo de preconceito. Todas são acolhidas é abracadas do mesmo jeito.

“Há algumas semanas, teve uma aluna que sofreu intolerância religiosa, e aí, diretoria chamou a gente, não falou nome, mas, a gente deu uma mensagem dando a entender que a gente é contra isso. A nossa casa é ecumênica, você chega aqui, pode rezar, você pode orar, você vai encontrar santinho na porta, você vai encontrar orixá na porta e tá tudo certo. E aqui, é um espaço seguro, então, se aqui é um espaço seguro, não tem espaço para cometer essas agressividades. E elas sabem que é todo mundo que chega, se sente bem e abraçado, se sente acolhido, porque realmente a gente não dá esse espaço.” — Fernanda (Preta Poeta)

Aula de bordado com a Professora Josyane de Souza Monteiro, mais conhecida como Josy. Foto: Raquel Ribeiro
Aula de bordado com a Professora Josyane de Souza Monteiro, mais conhecida como Josy. Foto: Raquel Ribeiro

Quantos ensinamentos, quantos aprendizados, para além das aulas de bordado, de macramê, de escrita ou de empreendedorismo. O Quintal das Josefinas transforma não só a vida de quem está aprendendo, mas, também de quem está ensinado, como afirmam as próprias educadoras do Instituto.

“Eu não tinha nem essa noção… eu trabalho de segunda a sexta e, às vezes, até sábado, mas, às quartas-feiras é terapêutico pra mim, preciso desse tempo ao lado delas. E, com tempo, elas foram me passando o quanto estava sendo bom pra elas também. Quando eu comecei, era uma coisa que fazia bem pra mim… é muito bom ter essa troca, elas me passam o quanto é importante estar aqui… é importante pra elas e é muito importante pra mim também essa troca.” — Catia

Uma troca entre mulheres que faz bem, com sororidade e empatia. Uma é capaz de se colocar no lugar da outra, de ser mais do que um ombro amigo em todos os momentos. E se existe competitividade entre mulheres, fica do lado de fora da roda, bem longe da porta do Instituto As Josefinas. Conforme Aira Nascimento afirma, o Quintal é um lugar de cura. Um lugar onde se inicia uma roda em volta da mesa, com uma deliciosa comida e termina com um delicioso bolinho de laranja, cuscuz recheado de afeto e poesia.

Dona Rose Nascimento, mãe de Aira, na preparação da comida para As Josefinas. Foto: Raquel Ribeiro
Dona Rose Nascimento, mãe de Aira, na preparação da comida para As Josefinas. Foto: Raquel Ribeiro

Aira fez o caminho de encontro com sua ancestralidade, inspirou-se em sua avó, Dona Josefa, e, munida desse legado, foi inspirando outras mulheres.

“É perceber que a gente tem história pra contar, temos memórias… Perceber que o sistema público tentou nos julgar pela questão da mobilidade, que o machismo tentou nos jogar num quartinho de empregada, ou na cozinha do lar, a que serve todo mundo e não tem uma história. Trazer essas memórias da casa, trazer essas histórias do quintal, é trazer as histórias de cada uma. É, principalmente, sobre colocar a mulher no centro da sua vida. No centro de si, conhecedora de nós mesmas, a gente se torna uma potência. Uma potência pra si e pro mundo… a gente não é uma ser apagado, não tô apagada no quarto de empregada, não tô apagada pelo racismo estrutural, não tô apagada pelo machismo da minha casa, que me colocou somente como a servidora da família. Eu não tô apagada pelo Estado, que finge que não me vê. Eu tenho uma história pra contar.” — Aira Nascimento

Sobre a autora: Carla Regina Aguiar dos Santos é jornalista comunitária, cria do Morro do Turano, que sempre prioriza o cotidiano das favelas em seu trabalho, mostrando além do que se vê nas mídias tradicionais. Já contribuiu para a Agência de Notícias das Favelas (ANF), A Pública, Portal Eu, Rio! e Terra. Recebeu os prêmios ANF de Jornalismo, na categoria cultura, e o Neuza Maria de Jornalismo.


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