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Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre justiça ambiental nas favelas fluminenses.
Na região metropolitana do Rio de Janeiro, a população das favelas e periferias do município de São Gonçalo, Leste Fluminense, enfrenta realidades precárias e desafiadoras. Com o intuito de transformar estas realidades, um grupo de mulheres de Jardim Catarina, Itaoca e Complexo do Salgueiro vem desenvolvendo iniciativas para a promoção da justiça ambiental e climática, do letramento de gênero, do empoderamento feminino e da geração de oportunidades de trabalho e renda para mulheres da área e do entorno.
Idealizadora e diretora-presidente da organização, Laura Torres contou que, hoje, o Espaço Gaia atende 110 crianças e 80 mulheres—destas, 15 são gestantes. Laura é cria do Jardim Catarina, mas, desde 2022, atua no vizinho Complexo do Salgueiro.
“O Espaço Gaia é um lugar de empoderamento e emancipação dentro do Complexo do Salgueiro. É uma organização composta por mulheres de São Gonçalo.” — Laura Torres
Nas iniciativas já criadas pelo Espaço Gaia, incluem-se ações para: promover a participação da mulher na sociedade; seu letramento de gênero; a segurança alimentar, com horta comunitária e curso de agrofloresta; gerar oportunidades de renda, com cursos de trancista e cerâmica; e produzir dados sobre racismo ambiental e o impacto das mudanças climáticas. Uma das ações do Espaço Gaia consiste em monitorar os pontos de enchentes dentro do Complexo do Salgueiro e informar seus moradores através de um grupo em um aplicativo de mensagens.
“A gente se define como uma organização da sociedade civil que atua com gênero e clima. Essas são as nossas duas principais causas e, dentro delas, entendemos que é muito importante falar sobre raça e classe, porque a gente está dentro de um território de favela, de uma zona de sacrifício, que é próximo de um antigo lixão. A maioria lá dentro é mulher e, obviamente, são pessoas pretas, pessoas pardas, pessoas sem escolaridade. E isso acaba impactando também no quanto de renda essas pessoas têm.” — Laura Torres
Das mulheres participantes dos projetos do Espaço Gaia, 50, segundo Laura, moram na Favela de Itaoca, perto do antigo lixão, que se situava entre a Estrada de Itaoca e o bairro Fazenda dos Mineiros, perpassando o Complexo do Salgueiro. Com o fechamento do lixão de Itaoca, em 2012, por conta da lei de resíduos sólidos, as moradoras da região que trabalhavam como coletoras de materiais recicláveis não tiveram para onde ir e nem de onde tirar seu sustento.
“Não receberam indenização, diferentemente [dos coletores de materiais recicláveis] do lixão de Jardim Gramacho. Aqui, dentro de São Gonçalo, não se recebeu essa indenização. Essas pessoas nunca viram o dinheiro. E isso acaba impactando todo o restante da história do antigo lixão, [gera] impacto social e econômico.” — Laura Torres
Muitas moradoras da Favela de Itaoca atendidas pelo Espaço Gaia foram afetadas pelo fechamento do lixão. É o caso de Flaviele Souza Cruz, 32 anos, que tem quatro filhos e vive com a família no Complexo do Salgueiro. Ela participa de projetos do Espaço Gaia desde 2023.
“Era a única renda que a gente tinha. Quando o lixão saiu, de repente, sem [o poder público] dar auxílio aos moradores daqui, que trabalhavam no lixão, [essa situação] deixou a gente sem saída. Sem ter de onde tirar. Então, até hoje, muitas catam material de reciclagem, procuram fazer uma faxina… Mas também é difícil, hoje em dia, arrumar trabalho, porque as patroas não querem assinar a carteira de diarista.” — Flaviele Cruz
Ela mencionou que o fechamento do lixão de Itaoca também afetou a saúde e a segurança alimentar das ex-catadoras.
“Muitas pessoas tiravam esse dinheiro do lixão para poder comprar remédios, alimentos, além do que a gente pegava lá. Não vou falar que a gente não comia as coisas que vinham de lá do lixão, porque a gente comia. Muitos alimentos que vinham bons a gente aproveitava.” — Flaviele Cruz

O Espaço Gaia foi criado, inicialmente, para oferecer formações de conscientização sobre violência obstétrica à população local. Segundo Laura, foi o primeiro projeto do território a trabalhar com emancipação e fugir de um assistencialismo destituído de um trabalho de base. Com o tempo, as idealizadoras identificaram outras necessidades no território que precisavam ser debatidas e abordadas.
“Eu estendia uma canga embaixo de uma árvore e sentava com as pessoas para conversar sobre violência obstétrica. Uma amiga tinha uns banquinhos e fazíamos uma roda para conversar. Depois de um ano, mais ou menos, nós conseguimos uma sede. Tudo chega para a gente, desde casos de violência doméstica até gente sem ter o que comer.” — Laura Torres
No aprofundamento de sua busca pela promoção de direitos no território, a organização criou o Observatório de Olho em Itaoca. Com o apoio de moradores, o Observatório realiza pesquisas para mapear as necessidades da comunidade com o intuito de incidir por políticas públicas.
“No ano passado, lançamos um relatório sobre monitoramento socioambiental. É muito mais palpável lutar por políticas públicas quando se têm dados.” — Laura Torres
Das 42 residências com que a pesquisa foi realizada, foi possível registrar a entrevista de 32. Dos moradores das residências entrevistadas, 75% são mulheres e 81,3% delas são negras. Quando o assunto é saneamento, 78,1% dos entrevistados não têm esgoto encanado, e 92,9% das pessoas que não têm acesso ao tratamento de esgoto são pretas. Além disso, 28,1% da residências não têm vaso sanitário. Das casas entrevistadas, 75% não têm acesso à água, ou a água que chega no domicílio não é potável, e 78,1% usam bicas coletivas. Com relação aos resíduos, 90,6% queimam o lixo produzido por não terem acesso aos serviços municipais de coleta de lixo.

Além disso, a organização está desenvolvendo uma pesquisa sobre economia do cuidado e racismo ambiental com 100 mulheres, entre moradoras atendidas pelo Espaço Gaia e outras que vivem perto do antigo lixão de Itaoca, em parceria com La Poderosa, organização da sociedade civil da Argentina. A ideia de fazer esse monitoramento surgiu a partir da conversa com as gestantes do projeto.
“A gente fez uma pesquisa para entender como é a vida das mulheres que moram no Complexo do Salgueiro, principalmente no que a gente chama de economia do cuidado, que são aquelas tarefas do dia a dia, tipo cuidar da casa, dos filhos, dos mais velhos, tudo isso que quase sempre sobra para as mulheres. Queríamos saber como a falta de estrutura no território—como a falta d’água, a dificuldade para conseguir vaga em creche, o transporte ruim, ou aquele que nem chega—atrapalha a rotina dessas mulheres e mexe com a saúde mental e emocional delas.” — Laura Torres
Um dos dados desta nova pesquisa revela a dificuldade de acesso a transporte público, o que pode dificultar o acesso das mulheres ao posto de saúde ou o acesso de seus filhos à creche. Das entrevistadas, 65% afirmam, segundo Laura, que levam mais de 15 minutos para fazer o trajeto até o ponto de ônibus a pé. Com relação aos gastos com transporte, o valor da passagem chega a consumir 25% da renda de quem vive na região. Outro problema é o acesso à água, já que mais da metade das pessoas sofre com a falta d’água e, dessas pessoas, 80% são mulheres. Destas mulheres, quase 43% disseram que saem para buscar água sozinhas.
Além dessa iniciativa, o Espaço Gaia está construindo a Agenda Ressuscita São Gonçalo. Como resposta à Agenda 2030 da ONU, que determina metas para garantir a justiça social e ambiental para toda a população global até 2030, a Agenda Ressuscita São Gonçalo faz parte de um movimento de Agendas 2030 Territoriais que, segundo o Espaço Gaia, “trazem as prioridades reais de cada região, mostrando o que precisa ser feito ali, com base na vivência de quem constrói o dia a dia daquele lugar.”
Elaborada em conjunto com outros movimentos e coletivos de São Gonçalo, a Agenda Ressuscita São Gonçalo reúne demandas das sete favelas do Complexo do Salgueiro (desde saneamento e mobilidade a saúde, educação e justiça climática) para serem entregues à Câmara dos Vereadores e à prefeitura de São Gonçalo em julho deste ano. O objetivo é identificar as lacunas no que diz respeito à falta de acesso aos direitos básicos, além de propor novas tecnologias para a garantia destes direitos.
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“Nesse relatório de monitoramento, a gente fala, por exemplo, sobre algumas tecnologias sociais e ancestrais idealizadas pelos moradores para sobreviverem no território”, disse Laura, que mencionou a doulagem coletiva como uma dessas tecnologias, utilizada no acompanhamento de gestantes do território, seja antes ou após o parto.
A autônoma Bruna Oliveira, 33 anos, tem três filhos e é moradora do Complexo do Salgueiro. Ela percebeu a importância da questão ambiental durante sua rápida participação no projeto de doulagem coletiva.
“Lá [no Espaço Gaia] tinha um curso em que eu não participei, porém o pouco que eu vi foi muito legal. As meninas plantavam, elas mesmas colhiam e levavam para casa, para o seu prato de cada dia. Isso foi muito bom, até mesmo para as crianças que iam com suas mães, porque ali elas aprendiam a comer saudável, ali elas aprendiam o que é você plantar para comer.” — Bruna Oliveira
O Espaço Gaia também oferecia formação em agrofloresta às mulheres do território, que aprendiam a manejar plantações de salsinha, manjericão, tomate, cana-de-açúcar, dentre outras verduras e legumes. Essa demanda foi identificada após a organização perceber carências nutricionais entre as crianças do Complexo do Salgueiro. Apesar de ser fundamental para a vida mais saudável da comunidade, o projeto de agrofloresta está parado desde a mudança de sede do Espaço Gaia, em dezembro de 2024. Apesar das dificuldades, as membras do projeto esperam que seja possível retomar as hortas comunitárias em breve. No momento, elas estão em busca de editais que possam apoiá-las e também lançaram uma vaquinha para comprar um novo espaço onde sejam capazes de realizar suas missões.
“[A formação em agrofloresta] Vem como aporte nutricional. Entendemos a necessidade de pensar em frutas e legumes, que são alimentos caros. O curso era para que elas tivessem acesso a frutas, legumes e verduras mais saudáveis, sem agrotóxicos. E a ideia do curso era a gente promover a consciência ambiental com elas. Então, a gente falou sobre o racismo ambiental, a gente falou sobre os mangues que tem lá.” — Laura Torres
Com o objetivo de ampliar o debate e influir em políticas de segurança para as mulheres gestantes, o Espaço Gaia promove o Programa Ciclos, uma roda de gestantes que é realizada semestralmente, consistindo em um acompanhamento de doulagem coletiva para gestantes; e a Roda de Gestantes, que promove trocas de conhecimento sobre o processo da maternidade para as mães do Complexo, como instruções para o parto.
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“Recebíamos muitos casos de violência obstétrica, casos em que o companheiro não pôde entrar porque funcionários do hospital não deixaram. Casos de empurrar a barriga e cortar. Eu pegava todas essas denúncias, encaminhava para o poder público e eles faziam fiscalização na maternidade. Com isso, a gente conseguiu algumas coisas a nível até muito importante, como uma câmara mortuária e uma autoclave.” — Laura Torres
A diretora afirmou que algumas ações da organização já provocaram respostas do poder público àquilo que classificam como violência obstétrica. Segundo Laura, por meio de denúncia à Câmara Municipal de São Gonçalo, os equipamentos foram instalados na Maternidade Municipal Mário Niajar.
Para Flaviele, o Espaço Gaia é, sobretudo, um lugar de troca de ensinamentos.
“O projeto vem ajudando muito a mim e a muitas outras mães aqui do Salgueiro. Ensina a gente muita coisa, a como passar por situações que, antes, a gente se desesperava, mas, hoje em dia, a gente respira fundo e conversa. Não é só pelo alimento [que a organização está aqui], é pelo propósito de ensinar a gente a saber nossos direitos, a conversar e a botar para fora as coisas que está sentindo.” — Flaviele Cruz
Bruna também lembrou de quando conheceu o projeto e a importância que essas mulheres tiveram ao apoiá-la durante uma depressão na gravidez.
“Eu estava com seis meses de gestação, passando por uma depressão porque eu tinha acabado de perder minha mãe, tinha sido mandada embora [do trabalho] grávida. Não sabia dos meus direitos. Por meio do Gaia, hoje, eu já sei dos meus direitos.” — Bruna Oliveira
De acordo com Laura, o objetivo é replicar as tecnologias pensadas e praticadas pelo Espaço Gaia em outras favelas do Rio de Janeiro, já que “a gente entende que [as atividades que o Espaço Gaia realiza] não são uma necessidade apenas do Complexo do Salgueiro”. O desejo das integrantes é que, em todas as favelas, as mães possam contar com uma rede de apoio tão diversa, flexível e resiliente como a que o Espaço Gaia provê às mães de Itaoca, Jardim Catarina e Complexo do Salgueiro.
Sobre o autor: Igor Soares é cria do Morro do Borel e jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente contribui com o #Colabora e atua como freelancer. Tem experiência em cobertura de cidades, direitos humanos e segurança pública, já tendo passado pela redação do Estadão, do Portal iG e produzido reportagens para a Folha de São Paulo.