Esta matéria faz parte de uma série de matérias sobre as eleições municipais de 2020, com enfoque nas perspectivas das favelas do Grande Rio.
No dia 22 de outubro foi realizado e transmitido ao vivo, pelo Zoom e Facebook, o Debate da Rede Favela Sustentável com Candidatos à Prefeitura do Rio de Janeiro 2020. Na ausência de debates televisivos devido à pandemia da Covid-19, o evento proporcionou aos candidatos a oportunidade de debater as suas propostas e visões para um futuro mais sustentável para as favelas da cidade do Rio de Janeiro. Pelo Facebook, o evento imediatamente chegou à 7.000 internautas, hoje ultrapassando 11.000. No dia seguinte, ficou disponível também no YouTube.
O evento não assumiu o formato de um debate eleitoral convencional. O foco não esteve nas habituais interações entre candidatos, mas sim nas interações entre candidatos e moradores de favelas, uma demografia sub-representada na esfera política brasileira. Os candidatos foram convidados a fazerem as suas falas de forma propositiva e concreta, se comprometendo que, se eleitos, trabalharão em prol de políticas de desenvolvimento sustentável junto das favelas.
O debate, organizado pela Rede Favela Sustentável (RFS), foi moderado por Theresa Williamson, planejadora urbana, fundadora e diretora executiva da Comunidades Catalisadoras*, e os candidatos presentes foram: Clarissa Garotinho (PROS), Cyro Garcia (PSTU), Eduardo Bandeira de Mello (REDE), Fred Luz (NOVO), Henrique Simonard (PCO), Luiz Lima (PSL), Renata Souza (PSOL) e Suêd Haidar (PMB).
Glória Heloiza (PSC) informou aos organizadores, logo antes do evento começar, que devido a um atraso causado por compromissos anteriores, estaria presa no trânsito e não poderia participar do debate. Martha Rocha (PDT) que teve sua presença confirmada, não compareceu e não comunicou à RFS que estaria ausenta. Benedita da Silva (PT) que confirmou presença, também não compareceu, enviando um comunicado à RFS no decorrer do evento onde, entre outras declarações, dizia: “Não pude comparecer ao debate de hoje, e peço desculpas por isso, mas quero dizer que estou de pleno acordo com os termos da carta-compromisso apresentada aos candidatos”. O ex-prefeito Eduardo Paes (DEM) e o atual Prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) aceitaram o convite, mas cancelaram três dias antes. A RFS não recebeu nenhuma resposta de Paulo Messina (MDB).
O pilar deste debate foi a carta-compromisso da RFS, um documento distribuído aos candidatos confirmados, na semana anterior do evento. A carta foi escrita por 60 membros da RFS representando projetos socioambientais em 38 favelas. A carta encoraja os candidatos—e pede o seu compromisso—de basearem seus planos de governo nas 21 propostas (e 82 sub-propostas) dos mobilizadores comunitários ativos nos territórios e conhecedores dos potenciais e desafios dos mesmos. A carta, “repleta de propostas de políticas públicas inclusivas e impactantes”, tem como objetivo que os candidatos reconhecem as favelas como ‘fábricas de soluções’, com suas iniciativas sustentáveis e microempresas já consolidadas—que devem ser incluídas no tecido social, cultural e econômico da cidade.
Refletindo sobre a relação da carta-compromisso da Rede Favela Sustentável com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a Agenda 2030 da ONU, Theresa explicou que “é como se tivéssemos pego os ODS e passado por uma consultoria com os mais engajados atores locais destas comunidades, resultando em uma proposta feita sob medida para que o Rio possa de fato alcançar os ODS”.
Compromissos com a Carta-Compromisso
Todos os candidatos presentes no debate da Rede Favela Sustentável fizeram referência à carta-compromisso durante suas falas e alguns se comprometeram com ela ou em realizar uma reunião com a RFS nos primeiros 100 dias do seu governo, concordando com o último item da carta: “Se for eleito, nos primeiros 100 dias do seu governo, o candidato marcará um dia de encontro para aprender e desenvolver propostas com a Rede Favela Sustentável”.
Suêd Haidar declarou que já havia assinado a carta, mostrando sua assinatura, enquanto Cyro Garcia declarou que queria “deixar claro que nós nos comprometemos a assinar a carta-compromisso da Rede”.
Renata Souza confirmou seu “compromisso com todos os itens colocados na carta apresentada pela Rede Favela Sustentável”. Eduardo Bandeira de Mello disse, “Muito mais do que aceitar o convite para essa reunião dos 100 dias, eu proponho que a gente tenha reuniões periódicas e eu quero que esse documento seja uma referência para a nossa administração”.
Fred Luz confirmou que assumia “desde já o compromisso de receber nos primeiros 100 dias de governo a… Rede Favela Sustentável para debater e aprender as prioridades e ajustes no plano de governo”. Henrique Simonard falou: “Sobre a carta-compromisso, eu gostaria de ressaltar que a maior parte, a essência da carta, ela diz muito com o programa que o PCO aprovou no seu congresso eleitoral”.
Luiz Lima disse de forma mais vaga: “Assumo o compromisso de estar com você e parabenizo a sua iniciativa”. Clarissa Garotinho não afirmou que estaria disposta a ter uma reunião com a RFS caso eleita, mas disse: “Eu estou aberta para a gente discutir a questão das cooperativas, a questão da formação de trabalho e renda, a questão da energia solar”.
Educação Ambiental e Hortas
Uma das questões mais discutidas durante o debate, de duas horas, foi como a sustentabilidade ambiental e resiliência social podem ser alcançadas através da educação. Suêd Haidar, a primeira candidata a falar no debate, destacou: “O nordestino que é a maioria que ocupa o território de favelas, como eu, sempre foi muito criativo, muito inovador, muito econômico com o seu produto, com a sua vida… com tudo que está no seu entorno”.
A carta-compromisso traz um claro posicionamento em relação à educação ambiental com foco em escolas municipais nas favelas em meio a pandemia: “Estamos diante de um futuro incerto onde se faz necessário investir em modos criativos e transversais de educação a fim de apropriar, empoderar crianças, jovens e adultos para construções e percepções de mundo capazes de assimilar as questões ambientais”. Assim, a carta pede que os candidatos se concentrem nas crianças e nos jovens, a fim de gerar um futuro mais sustentável para as comunidades na sua totalidade.
Bandeira de Mello, que foi chefe da Secretaria de Meio Ambiente do BNDS, centralizou grande parte de seu discurso na educação ambiental. Respondendo a uma pergunta feita por Lidiane Santos do Alfazendo na Cidade de Deus, sobre como o candidato “pretende utilizar e potencializar os projetos e programas já existentes de educação socioambiental nas favelas”, Bandeira de Mello disse que a “a educação ambiental vai ter que estar presente no currículo de 100% dos alunos”. O candidato também falou sobre como seu governo vai incorporar a alimentação saudável nas escolas como parte desse esforço. “Vamos incentivar a alimentação orgânica na merenda escolar”, acrescentando que as crianças serão educadas sobre os benefícios da alimentação orgânica. Por isso, o candidato afirmou que programas já existentes, como o Hortas Cariocas, serão melhorados e ampliados.
Em resposta à mesma pergunta, colocada por Ailton Lopes da Associação de Moradores do Trapicheiros, na Tijuca, o candidato Luiz Lima respondeu que “infelizmente nós não temos uma coleta de lixo nas comunidade carentes de forma efetiva… eu pretendo atuar com pessoas da comunidade que já realizam esse trabalho… envolver secretarias junto à comunidade… [secretaria] educacional, de meio ambiente, junto à associação de moradores, junto às ONGs, para que a gente possa desenvolver e cuidar da parte ambiental, fazendo que… a comunidade sinta orgulho de fazer parte daquele ambiente”.
Além de Bandeira de Mello, outros candidatos trataram também da segurança alimentar. Quando questionada por Rosana Mendes do Harmonicanto no Cantagalo sobre “O que você propõe para garantir e promover a segurança alimentar da população de favela?”, Suêd Haidar falou da importância dos alimentos produzidos para as comunidades pelas próprias comunidades: “No meu governo, a prefeitura irá fomentar recursos para que as comunidades, através das suas cooperativas, das associações de moradores… se organizem e ali criem um banco alimentar”.
Energia Solar
Conforme consta na carta-compromisso, um estudo recente demonstra que a Região Metropolitana do Rio é a região brasileira mais economicamente vantajosa para a geração e distribuição de energia solar. A carta diz então que “o Rio tem potencial para ser o protagonista mundial em energia solar”. Os candidatos foram questionados sobre o que eles devem fazer, se eleitos, para garantir que as favelas estejam no centro desse movimento em direção à energia sustentável.
Em concordância, Bandeira de Mello sublinhou o potencial do Rio em energias alternativas e elogiou a iniciativa RevoluSolar no Morro da Babilônia, Zona Sul. Para replicar este tipo de projeto, o candidato afirmou que vai ajudar no que for preciso, inclusive na obtenção de financiamento.
Adalberto Almeida da própria Revolusolar mencionada por Bandeira de Mello, e primeiro instalador de energia voltaica nas favelas do Rio, foi coincidentemente um dos membros da RFS a colocar sua pergunta no segundo bloco. Ele destacou que, em 2019, o Brasil ocupou o oitavo lugar no ranking mundial de países que mais geraram empregos em energia solar. Adalberto perguntou ao candidato Henrique Simonard qual seria a sua proposta para tornar o Rio protagonista da energia solar, e ao mesmo tempo, gerar empregos e renda para as favelas da cidade e seus moradores.
Em resposta, Henrique Simonard falou que, acima de tudo, sua proposta é acabar com a privatização que segundo ele, inibe o crescimento da energia solar. O candidato disse que seu partido defende o fim do monopólio corporativo da energia, nacionalizando-o: “Esses monopólios são quem mantém as comunidades nessa situação, subalternizada”.
Memória e Cultura
Como apresentado pelo integrante da RFS, Bruno Almeida, do Núcleo de Orientação de Pesquisa Histórica de Santa Cruz (NOPH) em sua pergunta à candidata Clarissa Garotinho, a grande maioria dos elementos valorizados da cultura carioca são nascidos, cultivados ou preservados nas favelas, quilombos e periferias da cidade. No entanto, o poder público parece não reconhecer esta contribuição cultural, e a RFS, na carta-compromisso, pede aos candidatos para darem um “basta!” a isto. Questionada como pretende fortalecer projetos de cultura e memória das favelas, Clarissa Garotinho sublinhou a importância da cultura. Ela afirmou que juntamente com o seu companheiro de chapa, o ator e cineasta Jorge Coutinho, ela promete passar do papel à prática, começando por dar continuidade ao projeto do Museu a Céu Aberto sobre a cultura afro-brasileira na Zona Portuária do Rio.
“A gente tem de destinar um percentual dos editais para fazer eventos de pequeno porte nas comunidades, destinados à cultura própria, afrodescendente.” Clarissa Garotinho defendeu que isto pode ser feito através da Lei Municipal de Incentivo à Cultura do Rio de Janeiro que segundo a candidata, destinará R$60 milhões para a cultura no ano que vem. Essas palavras corroboram com a carta-compromisso, que quer garantir que ao menos 24% dos recursos destinados à cultura pelas secretarias municipais sejam para iniciativas das favelas (correspondentes a 24% da população urbana).
Referenciando-se aos galpões abandonados na Avenida Brasil, Zona Norte, Clarissa Garotinho defendeu a elaboração de um núcleo de arte urbana, para celebrar artistas de rua e de favelas, com cursos para produtores e arte grafite, respeitando assim a carta-compromisso, que sublinha a importância dos artistas de rua.
Cyro Garcia, que respondeu a mesma pergunta colocada por Emilia Maria de Souza da Associação de Moradores e Museu do Horto, sublinhou que “as linhas de apoio à cultura têm de chegar na ponta”. Ele disse que hoje em dia estamos assistindo a privatização da cultura, pois apenas os artistas consagrados recebem o financiamento, através da lei de incentivo fiscal, e os artistas das favelas ficam de fora. Cyro Garcia condenou também a criminalização do funk.
Água e Esgoto
O ano marcado pela crise da Covid-19 e hídrica desmascarou a realidade precária do saneamento nas favelas, e a carta-compromisso introduz uma série de medidas para colmatar a atual situação, priorizando soluções e sistemas tanto centralizados quanto descentralizados para a realização do saneamento pleno. Para Renata Souza, única candidata no debate cria de favela, o Marco Legal do Saneamento revisado não vai de encontro às necessidades das favelas.
Respondendo a pergunta sobre saneamento colocada pelo integrante da RFS, Otávio Barros da Cooperativa Vale Encantado, comunidade que realizou seu próprio sistema de esgoto ecológico no Alto da Boa Vista, Renata Souza respondeu: “Queremos que as pessoas tenham acesso ao saneamento, mas que o valor pago por esse serviço seja algo acessível. Temos uma realidade na Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde a privatização do saneamento tinha lá no contrato de concessão, assinado por Eduardo Paes e mantido pelo Crivella, justamente que esse serviço não seria fornecido às áreas não urbanizadas—isso significa que as favelas estão fora”.
A candidata denunciou ainda os surtos de tuberculose na Rocinha e na Maré. Quando questionada sobre como pretende realizar o saneamento básico nas favelas, Renata defendeu o saneamento básico público, com obras estruturais nas favelas, a serem realizadas pelos próprios moradores, gerando trabalho e renda: “A gente viu em plena pandemia toda uma situação de falta de água nas favelas e a gente viu também o quanto isso prejudicou não só a higienização e a sanitização das favelas, como isso pode ter causado a maior proliferação do coronavírus. Então… a gente defende o saneamento básico público e a qualidade da água limpa… fundamental para a dignidade humana… No nosso programa de governo… essas obras de saneamento básico serão feitas pelos próprios moradores da área,… [realizando] geração de emprego e renda a partir de uma obra estrutural de saneamento básico”.
Fred Luz partilhou da mesma incredulidade, comparando o acesso atual ao saneamento a um de terceiro mundo. Ele disse: “O saneamento é uma vergonha na cidade do Rio de Janeiro porque os prefeitos de agora e os de antes… nunca se preocuparam de verdade. A questão da água que volta e meia não está em condições ou não é sequer fornecida, a questão do tratamento de esgoto… é vergonhosa na cidade do Rio de Janeiro que trata nem 50% do seu esgoto e é comparável a um país do terceiro mundo”. Ele sugeriu soluções locais, de condomínio.
Por outro lado, Luiz Lima, que votou a favor do revisado Marco Legal do Saneamento, estava confiante, e disse: “A gente tem que fazer diferente para buscar resultados diferentes. Eu tenho certeza que esse marco regulatório vai trazer um grande avanço, começando pela privatização da CEDAE”.
Resíduos Sólidos e Geração de Renda
A última pergunta foi colocada por Luis Cassiano, do Teto Verde Favela no Parque Arará, revelando a preocupação da RFS em relação a coleta de resíduos municipais. Ele disse: “Já que cerca de 54% do nosso lixo é orgânico, isso corresponde a mais de R$600 milhões para recolher resíduos orgânicos e aterrar, perdendo dinheiro e fonte de matéria prima para hortas, e enchendo nossas ruas de caminhões”. Bandeira de Mello concordou, defendendo a redução da produção de resíduos sólidos, através de iniciativas de economia circular, e também por conta do aterro de Seropédica, com data de validade da gestão atual para 2026.
Na carta-compromisso, a RFS pede mais atenção aos catadores, responsáveis por 90% da reciclagem no Brasil, por parte do poder público. Cyro Garcia, no seu último minuto de fala, apresentou a sua proposta de municipalização de todas as cooperativas, assim como de dar mais direitos trabalhistas aos coletores, passando pela entrega de equipamento de proteção e higiene.
Para Fred Luz, que respondeu uma pergunta sobre geração de renda através da economia solidária e justa nas favelas, colocada pela Valdirene Militão do Projeto Ricardo Barriga na Maré, o empreendedorismo é a resposta para gerar mais renda, e para isso, é necessário que a prefeitura apoie os moradores de favelas, através da simplificação, algo prezado na carta-compromisso. Ele referencia a coleta seletiva de lixo como uma atividade a explorar, e relembra um morador da Vila Cruzeiro que pegou um terreno cheio de lixo e gerou renda fazendo coleta e acabando com o lixão. O candidato acrescentou: “A favela é fonte de criatividade e empreendedorismo, e o poder público em vez de complicar deve incentivar”.
Luiz Lima partilhou de uma visão semelhante, dizendo: “Hoje, nós temos sete pontos de coleta no nosso município. Gastamos R$600.000 por dia de transporte desses pontos para Seropédica. Se a gente tivesse 52 pontos onde poderíamos fazer coleta de lixo, nas comunidades, fazendo emprego, fazendo reciclagem, fazendo lixo orgânico, também daria para nossas usinas produzir energia, como acontece em Singapura, Portugal, e Espanha”.
Nas palavras de Renata Souza, que cresceu na Maré, na Zona Norte, “a favela precisa ser reconhecida como cidade, favela é cidade!”, pois é central na vida urbana no Rio de Janeiro e, como tal, deve ser parte integrante do urbanismo sustentável.
No final do debate o áudio foi aberto para todos os presentes na sala do Zoom se despediram, e o clima foi de alegria pelo exercício democrático do evento.
Assista ao Debate Aqui:
*Tanto o RioOnWatch quanto a Rede Favela Sustentável são iniciativas da Comunidades Catalisadoras.