Esta é a contribuição mais recente da nossa série anual de matérias analisando as Melhores e Piores Reportagens Internacionais sobre Favelas do Rio, que faz parte do debate promovido pelo RioOnWatch sobre a narrativa e as representações midiáticas acerca das favelas cariocas.
A pandemia do coronavírus e as respostas a ela dominaram a cobertura das favelas do Rio na mídia internacional em 2020. A cobertura focou nos desafios específicos que as favelas enfrentam na prevenção do vírus, no avanço do vírus nessas comunidades, nas respostas governamentais inadequadas e nos esforços comunitários para salvaguardar a saúde e o bem-estar dos moradores. Alguns artigos demostraram um excelente trabalho de busca de líderes locais e de documentação das respostas realizadas por eles, enquanto outras caíram em estereótipos perigosos e não verificados, conforme detalhado abaixo.
Diversos relatórios forneceram coberturas importantes sobre o crescente abuso mortal de força pela polícia do Rio, mesmo no início da pandemia—em abril, a polícia do Rio matou 43% mais pessoas do que em abril de 2019—e o subsequente caso no Supremo Tribunal Federal que proibiu operações policiais em favelas durante a pandemia. A mídia internacional também abordou a organização antirracista em nível nacional e seus paralelos com ativismo semelhante em outras partes do mundo.
Desde março de 2020, de acordo com o Painel Unificador Covid-19 nas Favelas*, pelo menos 28.110 moradores de favelas do Rio tiveram Covid-19, com mais de 3.000 morrendo, sendo o principal responsável a falta de resposta adequada de representantes da prefeitura, do estado e do governo federal. A subnotificação tem sido um problema grave. Embora o novo prefeito Eduardo Paes tenha prometido levar a pandemia mais a sério—e foi retumbantemente endossado pelos eleitores frente à possibilidade de um segundo mandato de Marcelo Crivella—o histórico de Paes sobre despejos forçados e a gentrificação da cidade ocorridos durante seu mandato de 2009-2016 exige um olhar atento da mídia para saber como os moradores de favela se sairão quando ele retornar ao comando.
A mídia internacional cobriu os resultados gerais das Eleições Municipais de 2020, uma espécie de referendo sobre as respostas à pandemia—incluindo a narrativa de Bolsonaro sobre a pandemia—e sobre o bem-estar social. O desprezo e a falta de interesse de Bolsonaro em administrar a crise de uma maneira eficaz, com base na ciência, referindo-se ao vírus como “apenas uma gripezinha”, se tornaram mundialmente famosos. A mídia também cobriu o fato de que Bolsonaro, que sempre foi um forte opositor de políticas sociais como o Bolsa Família, foi compelido, pela pressão popular, a aprovar um auxílio emergencial mensal de R$600 para todos os que não tenham emprego formal, e de R$1.200 para mães solteiras trabalhadoras informais.
Paradoxalmente, durante a pandemia, essa ajuda emergencial teve um impacto positivo nos índices de aprovação do presidente, levando-os a um recorde histórico, mesmo em regiões onde ele é impopular há muito tempo, como o Nordeste. A expiração destes benefícios se aproxima e seus efeitos tanto no bem-estar dos cidadãos mais pobres quanto no projeto político de Bolsonaro merecem atenção cuidadosa da mídia. Bolsonaro, preocupado com os impactos imprevisíveis do fim da ajuda emergencial sobre sua popularidade, pediu um aumento no auxílio médio de R$190 pago pelo Bolsa Família aos brasileiros mais pobres, voltando atrás em sua própria retórica de longa data.
Melhores Reportagens
Boas discussões sobre os desafios enfrentados pelas favelas em meio à pandemia do coronavírus incluem este artigo do Washington Post, que ouviu agentes comunitários de saúde no Borel, na Zona Norte do Rio, moradores da Rocinha e do Complexo do Alemão, além deste artigo do The Guardian, que analisou, na fase inicial da pandemia, as diferenças—já distinguíveis—nas habilidades de proteção contra o vírus entre ricos e pobres do Rio.
A melhoria mais impressionante que vimos em 2020 em relação as matérias dos anos anteriores foi a ampla cobertura de alta qualidade dada às respostas comunitárias à negligência do governo, no caso deste ano devido ao coronavírus, incluindo textos de leitura obrigatória no The Guardian (que também produziu este excelente vídeo), Slate, BBC e o Brazilian Report. A Reuters cobriu os esforços de limpeza profunda no Santa Marta, a NPR falou com um líder comunitário na Cidade de Deus, The Havana Times cobriu os esforços de fotógrafos de favelas, e um artigo do Americas Quarterly cobriu o aplicativo lançado pelo jornal Voz das Comunidades para compartilhar notícias sobre o vírus voltado para moradores das favelas. A OpenDemocracy publicou versões traduzidas de artigos da jornalista Thaís Cavalcante da favela da Maré sobre como os jornalistas comunitários estão respondendo à Covid-19 e a luta pelo acesso à saúde mental na Maré; a cobertura de Cavalcante sobre o trabalho de jornalistas de favelas também foi publicada na IJNet. The Sociable e The Response estavam entre aqueles que cobriram os esforços dos moradores para fechar a lacuna de dados sobre a pandemia nas favelas. A AP cobriu os esforços de sanitização na Rocinha e como uma escola de samba na Vila Vintém fez a transição da costura de fantasias de carnaval para máscaras e aventais médicos, e um artigo da France24 sobre a pandemia apresenta um fisioterapeuta que mora no Complexo do Alemão.
Cobrindo a segurança pública, The New York Times fez um escrutínio crucial do ano recorde de homicídios cometidos pela polícia no Rio, 2019, com um longo artigo investigativo examinando as consequências das posições linha-dura do agora suspenso governador Wilson Witzel. Um artigo em Quillette faz um histórico de quatro décadas de uma guerra fracassada contra as drogas no Rio depois que os altos níveis de violência policial aumentaram ainda mais durante os primeiros meses da pandemia. A revista YES! fez uma excelente cobertura do clamor de moradores após o assassinato do menino João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, morto pela policia no Complexo do Salgueiro, São Gonçalo. A Yes! Também abordou o protagonismo das favelas no caso do Supremo Tribunal Federal que resultou na proibição de operações policiais nas favelas durante a pandemia, que ficou conhecida como ADPF das Favelas.
2020 também incluiu a cobertura de notícias positivas em favelas não diretamente relacionadas ao coronavírus: Level do Medium olhou para a revolução da mídia acontecendo nas favelas do Brasil, a AP fez uma matéria sobre os esforços dos moradores das favelas para tornar suas comunidades mais verdes e a Al Jazeera cobriu um projeto de balé no Complexo do Alemão.
Também observamos uma cobertura excelente sobre questões socioeconômicas mais amplas no Brasil em artigos que não tratavam das favelas, mas tratavam de tópicos cruciais para seus moradores. Isso inclui um artigo profundo do The Economist sobre a redução do tamanho dos pagamentos do Bolsa Família pelo governo Bolsonaro antes da pandemia, um artigo na National Geographic sobre o duplo dilema enfrentado pelas trabalhadoras domésticas no Brasil durante a pandemia e uma discussão no Americas Quarterly sobre por que os protestos nos EUA por justiça racial ressoam tão profundamente no Brasil. The Brazilian Report abordou a dificuldade dos brasileiros em acessar o auxílio de R$600 do governo federal.
Piores Reportagens
O estereótipo incorreto de que as favelas são totalmente controladas por gangues de traficantes e milícias surgiu em duas linhas de cobertura sobre a pandemia do coronavírus. Um deles caracteriza os traficantes como provedores centrais de bem-estar social nesta época de crise. Artigo da Filter Magazine usa uma entrevista com um morador da Rocinha para afirmar que os traficantes de drogas desempenhavam um papel fundamental na distribuição de mantimentos e sacolas de dinheiro na comunidade diante da “escassez de outras ajudas”. É importante notar que, como a maior favela do Brasil, a Rocinha é do tamanho de uma cidade pequena, com mais de 100.000 habitantes. Embora o artigo mencionasse alguma ajuda proveniente de ONGs e o auxílio emergencial do governo federal, ele deixou de mencionar os incríveis e diversos esforços conduzidos por inúmeras organizações baseadas na Rocinha, desde ser a primeira favela a emitir sua própria relatoria de casos, até sua mídia comunitária ativa e parcerias entre ativistas locais e trabalhadores de saúde pública, que identificaram cuidadosamente famílias com grandes necessidades e mantiveram esforços de ajuda por meses, engajando aliados por toda a cidade. Esses programas liderados por moradores foram a fonte principal de ajuda as famílias desasistidas, na Rocinha e em outras favelas da cidade e do país. Isso pode ter ajudado a evitar que a Rocinha fosse a favela mais atingida pela pandemia.
Vídeo feito pelo coletivo Rocinha Resiste de sua parceria com agentes de saúde locais.
Outra generalização problemática que surgiu foi a de gangues de criminosos atuando como fiscalizadores da saúde pública nas favelas, decretando bloqueios para desacelerar a disseminação do vírus. Um artigo de Ozy escreveu que “Com o presidente Jair Bolsonaro classificando a pandemia como ‘gripezinha’ e criticando as medidas regionais de bloqueio, os traficantes de drogas e grupos paramilitares do país interviram para impor o distanciamento social para combater a propagação do coronavírus.” Embora haja evidências de que esse tipo de mensagem de traficantes tenha sido veiculado em algumas favelas, descrevê-la como generalizada é um exagero irresponsável. O artigo de Ozy cita mensagens em duas favelas, embora existam cerca de mil na cidade. Enquanto isso, como apontado pelo sociólogo José Claudio Souza Alves, um especialista em milícias, que controlam cada vez mais as favelas da cidade: em vez de impor quarentena, as milícias em muitas áreas pressionaram para que o comércio e as atividades permanecessem abertos durante a pandemia, visto que se beneficiam de taxas de extorsão de atividades comerciais.
Antecipando-se a 2021: Em que Ficar de Olho
Enquanto os planos nacionais para a vacinação contra o coronavírus ainda estão no ar, moradores de favela parecem destinados a muito mais meses de risco da doença, especialmente com a chegada da cepa britânica da Covid-19. Não está claro quando a proibição pandêmica às operações policiais nas favelas será suspensa e em que tipo de violência isto pode resultar. Um juiz do Supremo Tribunal Federal já está questionando o governo do Rio sobre uma longa lista de operações que parecem ter violado a proibição.
Embora os resultados das eleições locais do Brasil representem um pequeno golpe no poder de Bolsonaro e que, desde então, seu aliado, o prefeito do Rio Marcelo Crivella tenha sido preso em 22 de dezembro por acusações de corrupção, o presidente continua popular como descrito acima. A maneira como a nova administração dos EUA liderada por Joe Biden responderá ao Brasil sob sua liderança será um determinante crítico dos resultados futuros em todo o país e de tópicos importantes—desde o meio ambiente aos direitos humanos e justiça racial—até mesmo em comunidades locais como as favelas do Rio.
Enquanto isso, o Prefeito Eduardo Paes foi empossado em 1º de janeiro. Seu governo merece um escrutínio minucioso, dado seu histórico de 2009-2016, quando Paes expulsou cerca de 80.000 cariocas—a maioria moradores de favelas—de suas casas, gastando o equivalente a dezenas de bilhões de dólares para redesenhar a cidade supostamente para as Olimpíadas, com pouco impacto positivo sentido hoje. Será necessário manter um olhar atento para saber se ele tentará usar a pandemia como um novo pretexto para despejos forçados.
No front socioeconômico, os moradores de favelas do Rio deverão enfrentar desafios contínuos com o auxílio emergencial da pandemia acabando e o aumento dos preços dos alimentos.
Acima de tudo, a cobertura das favelas pela mídia internacional deve continuar a se concentrar em como as comunidades estão respondendo a essas circunstâncias sem precedentes—suas respostas serão repletas de exemplos positivos para o resto do mundo.
*O Painel Unificador Covid-19 nas Favelas e o RioOnWatch são projetos da ONG Comunidades Catalisadoras (ComCat).