Esta matéria faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio.
Eu moro em uma comunidade batizada de César Maia, localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, mais precisamente no bairro de Vargem Pequena. No entanto, seu nome oficial é Conjunto Bandeirantes I e II, o nome é devido ao fato de ela ter surgido a partir de um conjunto habitacional entregue durante o mandato do então prefeito, César Maia, em 1996.
É uma comunidade nova se compararmos a outras comunidades da região de Jacarepaguá, como Rio das Pedras e Cidade de Deus que surgiram ainda na década de 1960. Mesmo sendo uma comunidade “nova” surgida de construções realizadas pelo poder público, ela sofre com um problema semelhante ao enfrentado em várias outras comunidades do Rio de Janeiro: os apagões.
Eles ocorrem durante todo o ano e não têm hora ou dia para acontecer, mas estes se intensificam com a chegada do verão e principalmente no período noturno, quando as pessoas retornam para suas casas após o trabalho e ligam seus ventiladores e aparelhos de ar condicionado. Em resumo, a rede elétrica não acompanhou o crescimento da comunidade e acredito que esta seja a causa dos problemas energéticos da César Maia.
Aqui na comunidade, temos uma Clínica da Família, a Professor Maury Alves de Pinho, que sempre tem seu atendimento à população afetado pelo serviço mal provido pela concessionária de luz—a Light. A Clínica Professor Maury Alves de Pinho possui três equipes de Saúde da Família, que atendem toda a comunidade do César Maia, Coroado e Horizonte, todas na região de Vargem Pequena. Como se pode imaginar, esta clínica presta serviços fundamentais—e escassos na região—à população.
Como na maioria das Clínicas da Família, há uma sala de vacinação que é um retrato triste desta injustiça distributiva. Há uns cinco anos a clínica precisou trocar a geladeira que armazena as vacinas, devido a constantes apagões de energia, ocorridos principalmente à noite. Em um destes apagões, foi necessário transferir todas as vacinas da clínica para outra unidade de saúde, para que as doses não se perdessem. Agora a clínica conta com uma câmara fria para imunobiológicos (vacinas) que possui baterias internas, podendo aguentar até 24 horas sem energia elétrica.
Vale ressaltar que as Clínicas da Família serão pólos de vacinação contra o coronavírus e, como em campanhas de vacinação anteriores, as clínicas serão pontos de atendimento de toda a população e não apenas dos moradores das comunidades.
Quantas outras comunidades têm Clínicas da Família e sofrem com constantes apagões? Será que todas elas já conseguiram trocar suas geladeiras, onde sofrem com o péssimo serviço oferecido às comunidades? As favelas, em meio a esse abandono energético, terão a possibilidade de armazenar os imunizantes anti-coronavírus? Qual será o impacto da injustiça energética e distributiva na imunização das favelas cariocas?
As favelas do Rio e a vacina da covid-19. As Clínicas da Família e Centros Municipais de Saúde serão pontos de vacinação. Nem todas as unidades tem geradores de energia. A falta de luz na favela é diária e as vacinas precisam de refrigeração, se não, vão ser perdidas. Ai ai
— Michel Silva (@eumichelsilva) January 12, 2021
Vale a reflexão pois, neste momento, é importantíssimo para o processo de vacinação anti-Covid-19 nas favelas que saibamos as capacidades das unidades básicas de saúde dos territórios. Desde o início da pandemia, não ocorreram mudanças dentro da comunidade César Maia para dar fim aos apagões, que continuam frequentes dia e noite. Ironicamente, aconteceu uma queda de energia enquanto esta matéria estava sendo escrita.
Outro problema que agrava o fornecimento de energia elétrica no verão são as chuvas fortes e, como resultado delas, a falta de energia. Quem vive em favela ou em alguns bairros da periferia já fica apreensivo quando chove, pois é quase certo que a luz ao menos começará a piscar. Variações na quantidade de energia que chega às casas fazem com que os eletrodomésticos comecem a funcionar abaixo do desempenho esperado, o que faz com que lâmpadas, por exemplo, pisquem.
E o problema da falta de energia, por vezes, é estritamente sentido por nós. Falo isso com propriedade, em primeira pessoa, porque já aconteceu de eu, voltando do trabalho, à noite, perceber que, durante todo o caminho, havia energia elétrica, mas que, chegando na comunidade, tudo estava apagado. Porque a favela é uma ilha escura cercada de luz por todos os lados? Não temos o mesmo acesso que os bairros do entorno. Desigualdade vista a olhos nus na distribuição da rede e na sua manutenção, na alocação de recursos e na expansão.
A comunidade fica localizada mais ou menos a 5km do Recreio dos Bandeirantes, bairro nobre e vizinho ao nosso, onde há apartamentos e condomínios de luxo. Não é incomum a comunidade estar sem luz e os apartamentos do bairro vizinho estarem com as luzes acesas. E mesmo quando há um grande apagão que atinge a nossa comunidade e o bairro vizinho ao mesmo tempo, é possível perceber que a energia é sempre restabelecida primeiro no bairro nobre e depois na nossa comunidade. Precisamos de igualdade na manutenção da rede elétrica! As favelas historicamente vêem seu direito pleno ao acesso seguro e legal à energia elétrica negado.
“É frustrante chegar em casa após um longo dia de trabalho e não poder ligar seu aparelho de ventilador para se refrescar. As quedas de luz aqui já foram piores e maiores mas, mesmo com certa melhora, ainda está longe de ser um cenário ideal de fornecimento de energia”, disse João*, morador da comunidade.
“Há uns 10 anos vim morar na comunidade e sofro com crises de asma. Ao chover a noite já ficava apreensivo pois tinha medo de faltar luz e precisar usar o aparelho de nebulizador. Só fiquei tranquilo quando consegui comprar um aparelho que não depende de energia elétrica para funcionar. O vento forte também faz a energia oscilar e aqui é uma das regiões que mais venta no Rio de Janeiro”, afirmou Felipe*, morador da comunidade.
A queda de luz traz diversos outros problemas. Um deles é a queima ou mal funcionamento de aparelhos eletrodomésticos e eletrônicos não apenas dentro das residências, mas também de infraestrutura pública ou de serviços concessionados. Havia uma época em que bastava apenas oscilar a energia, bastavam alguns segundos, e quando a luz retornasse não tínhamos a certeza se teríamos novamente o sinal de internet. Ou seja, um serviço precário de eletricidade resulta na prestação de outros serviços públicos de forma precarizada, como água, telefone e internet. Como bombear água sem eletricidade?
Uma grande companhia que presta serviço de telefonia e de internet dentro da comunidade mantém “quadros” de internet instalados aqui dentro. Se, após uma queda de energia, estivéssemos sem internet, já se sabia o que havia acontecido: uma peça dentro deste “quadro” havia queimado. De pronto, eu ligava para a central de atendimento informando o problema. A atendente dizia “vamos mandar uma equipe para sua residência e verificar o problema”. Eu rebatia “envia a equipe para o meu quadro, é lá que está o problema. Aqui é assim: faltou luz, queima uma peça!” Numa dessas quedas de energia, queimou uma peça que não tinha substituta no Rio de Janeiro. Foi preciso que a empresa trouxesse uma peça nova de São Paulo. Foram semanas sem conexão de internet, por causa de uma simples queda de energia que durou segundos. Hoje esse problema de não ter conexão toda vez que tem apagão não ocorre mais, ao menos não na minha parte da comunidade. Mas levaram anos até resolverem este problema. A comunidade é dividida entre o lado Bandeirantes I e II e, às vezes, ocorrem oscilações de energia de um lado mas não do outro.
É evidente que as unidades de saúde pública de favelas e periferias, recorrentemente privadas de luz, água, sinal de internet e telefone, não têm condições de servir à população da maneira que deveriam. A favela também paga imposto e luz! E muito imposto! Também tem direito a um fornecimento adequado de energia elétrica, mas parece que fomos esquecidos. O que nos resta é esperar e observar como essas contingências vão interferir na vacinação das favelas.
*Os nomes dos entrevistados no texto são fictícios, para preservar a identidade dos moradores. Joaquim da Silva é um pseudônimo, escolhido para preservar a identidade do autor.
Sobre o artista: Marcelo Vitor de Macena, Marcelo Fanac, 43 anos é designer, ilustrador, tatuador e artista urbano desde 1999. Ele atua como produtor cultural e curador em diversos projetos socioculturais.
Esta matéria faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio.