VI Julho Negro: Elas Estão na Linha de Frente na Luta pela Desmilitarização

Autoras e Ativistas Negras de Favela Discutem a Militarização da Vida

Arte original por Anna Paula Rodrigues
Arte original por Anna Paula Rodrigues

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Esta matéria faz parte da nossa cobertura contínua dos eventos do Julho Negro, e da série de matérias do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas. Para contribuir com essa pauta, clique aqui.

Neste ano, o VI Julho Negrouma articulação que visa fortalecer a luta contra a militarização, o racismo e o apartheid no Brasil e nos países do Sul Global—trouxe o tema “Nem Tiro, Nem Fome, Nem Covid! A Favela Quer Viver!” através de lives transmitidas pelo canal do YouTube e página no Facebook do Julho Negro, devido à pandemia do coronavírus. A articulação internacional composta por doze entidades, movimentos e coletivos periféricos, tem o apoio de três organizações: Justiça Global, FASE e Instituto PACS.

Violências de gênero em contextos militarizados cartografia escrita por mulheres traz contos com histórias sobre impactos da militarização

Nesta 6ª edição, no dia 28 de julho, às 18h, foi realizada a live, Desmilitarização Por Elas. A live marcou o lançamento das publicações: A Fortaleza das Mulheres: Relatos sobre a militarização da vida e Violências de Gênero em Contextos Militarizados: uma cartografia escrita por mulheres. O evento teve a participação de autoras das obras e a mediação ficou por conta de Beatriz Virgínia, do CEASM. Durante a roda de conversa as autoras promoveram um olhar sobre corpos femininos e favelados. 

Violências de Gênero em Contextos Militarizados: Uma cartografia escrita por mulheres foi realizada em parceria com o programa da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), no Rio de Janeiro, o Núcleo de Pesquisas Urbanas da UERJ e o Núcleo de Estudos de Gênero PAGU/UNICAMP. A publicação surgiu a partir de reuniões entre 2016 e 2017 sobre a violência de Estado

“A Fortaleza das mulheres relatos sobre a militarização da vida”, publicação organizada pelo Instituto Pacs em parceria com Gizele MartinsA segunda cartografia lançada durante a live: A Fortaleza das Mulheres: Relatos da militarização da vida, organizada pela jornalista e comunicadora popular mareense, Gizele Martins, traz relatos de mulheres de favelas cariocas, da Palestina, de Honduras e do México. O livro é uma parceria do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS).

Mônica Cunha, integrante do Movimento Moleque e da Coalizão Negra por Direitos, relembrou como a desmilitarização é importante ao afirmar que o oposto recai sobre os corpos negros. Trazendo essa reflexão, Mônica abriu a live, que contou com a presença de educadoras e comunicadoras populares, militantes, pesquisadoras e integrantes de diversos coletivos, sendo elas: Erika Batista, moradora da Maré; Gizele Martins, do Maré 0800; Valdirene Militão, do Projeto Ricardo Barriga; Jessica Lene, do LabJaca; Buba Aguiar, do Coletivo Fala Akari; Marcelle Decothé do Instituto Marielle Franco e Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro; Mônica Cunha, do Movimento Moleque; Michele Seixas, da Articulação Brasileira de Lésbicas e da Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste.

As falas mostraram que a militarização afeta de forma singular as mulheres negras faveladas, deixando-as mais vulneráveis. Pauta das cartografias lançadas no evento e das falas das participantes, os impactos que a militarização causa na vida das mulheres foi o cerne da live “Desmilitarização por Elas”. Durante a conversa, mulheres contaram os impactos que sofreram e sofrem devido à militarização no Brasil.

'Desmilitarização por Elas', evento do VI Julho Negro, reuniu mulheres ativistas das favelas cariocas contra a militarização da vida

Érika Batista, moradora da Maré e coautora da cartografia, Violências de Gênero em Contextos Militarizados, é também professora de química e moradora de Nova Holanda, no complexo da Maré. Ela relatou a experiência de publicar o livro fruto de pesquisa que durou cerca de cinco anos: “Construímos a cartografia em 2017. Foi um processo muito construtivo, apesar de que foi um tema que abre muitas feridas. Durante os encontros eu sempre me fortalecia, era uma sensação de que não estava sozinha nesse processo. Nós do grupo somos todas mulheres periféricas e tiramos dali um refúgio. O tema nos agride até hoje. Por isso é tão importante a luta em cima desse sistema que nos oprime e o lançamento dessa cartilha”. Érika explicou porque militarização e gênero estão diretamente ligados:

“Nós mulheres estamos na linha de frente nesse contexto e a militarização tem impacto ainda maior na vida de mulheres negras periféricas. E a gente sofre outras violências a partir e além da militarização. Trazer essa discussão é muito difícil e somos nós mulheres que estamos abordando o tema. Durante a cartografia, nos preocupamos com a vulnerabilidade, já que as mulheres são quem sempre colocam a cara pra fora. Não é um impacto apenas físico, mas também mental. São diversas mulheres em terapia para conseguir lidar com o sofrimento psíquico.”

Desmilitarização já! Arte por: Camila Fiuza

Quem sentiu a dor da militarização na alma e na pele foi Mônica Cunha, uma das participantes da live de lançamento. Na ocasião, a co-fundadora do Movimento Moleque, existente há 20 anos, relembrou dos 31 anos do movimento das Mães de Acari e das tristes lembranças e marcas deixadas pela militarização. Mônica é mãe de vítima do Estado, teve o filho Rafael da Silva Cunha assassinado no dia 5 de dezembro de 2006. A defensora dos direitos humanos fez do luto a sua luta e hoje defende vidas negras e integra a Coalizão Negra Por Direitos:

“Estou na luta para combater o racismo, exigir direitos humanos de verdade e pedir o fim da militarização. Eu conheci o pior lado da militarização, com o desencarceramento do meu filho e depois o assassinato dele. Ficamos escravizadas pela dor, a gente adoece e precisamos criar forças para continuar vivendo. Elogio o trabalho da cartografia feita por vocês, acompanhei de perto e esse trabalho é muito importante para mostrar que as vidas das mulheres negras importam, que o nosso útero importa, que parimos vidas para gerar famílias e não mão de obra.”

A militância de Mônica teve início bem antes do assassinato do filho Rafael. Quando ele tinha 15 anos e passou a cumprir medidas socioeducativas em uma unidade do Degase, no Rio de Janeiro, Mônica pedia que as mães de adolescentes internados chegassem cedo nos dias de visita. A partir daquele momento, elas começaram a ler juntas na porta do Degase, o Estatuto da Criança e do Adolescente, exatamente as partes sobre adolescentes autores de atos infracionais.

Nessa linha, Marcelle Decothé, do Movimento Favelas na Luta, resgata a dissertação do mestrado em políticas públicas em direitos humanos que defendeu em 2019. Oriunda da Baixada Fluminense, Marcelle é autora da pesquisa Baixada Cruel: Uma Cartografia Social do Impacto da Militarização na Vida das Mulheres da Baixada Fluminense, mostrando o histórico processo da desumanização da população negra. Ela explica:

“Estamos vivendo no Brasil uma ampliação da desesperança e o debate tem sido levantado por mulheres. A militarização não está apenas no campo objetivo, no caveirão, mas também no subjetivo, na mudança da vida das mulheres, seja nos seus filhos, no assédio sexual, no racismo. Ou seja, a militarização afeta as mulheres de forma central… Na década de 1940, 1950 e 1960, a demanda da favela era política social, política pública; era água, moradia, saneamento… e não segurança pública. Eram os nossos direitos em ter trabalho e renda. Na década de 1990 essa pauta foi modificada. Então, a segurança pública passou a ser uma grande demanda. Dá-se aí a importância dessa discussão. Precisamos entender que precisamos desmilitarizar não só a segurança pública, mas a cultura, a saúde, a educação, o nosso cotidiano.”

Gizele Martins reforçou o quanto a militarização impacta subjetivamente a vida de mulheres moradoras de favelas e periferias. A jornalista e comunicadora comunitária organizou o livro, publicado pelo PACS, Fortaleza das Mulheres, que traz os impactos da militarização na vida das mulheres mães do Rio de Janeiro e de outros lugares do mundo, a exemplo da Palestina e do México. Gizele questiona:

“Eu sempre pergunto: por que as dores das mulheres negras não saem na mídia?”

Intervenção artística dialoga com falas da roda de conversa.

A live de lançamento das publicações também ficou marcada pela intervenção de arte gráfica ao vivo do Coletivo Popular de Mulheres da Zona Oeste. A pintura foi transmitida em tempo real durante a live. Ao final das trocas compartilhadas pelas autoras das obras, a artista Saney Souza apresentou a facilitação gráfica contendo artes que representam a mensagem central da live: desmilitarização do cotidiano das mulheres já! Ao final, Saney Souza declamou o poema feito por ela durante o Julho Negro:

Assista à Live “Desmilitarização Por Elas” Aqui:

Sobre a autora: Camila Fiuza é jornalista formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Oriunda da escola pública, integra o movimento Mães de Maio do Nordeste. Mulher negra, periférica e ativista de direitos humanos e antirracismo, contribuiu para rádios comunitárias e passou pela Record TV Itapuã e rádio Band News FM em Salvador.

Sobre a artista: Anna Paula Rodrigues é designer e ilustradora freelancer, formada em desenho industrial pela UFRJ. Anna Paula—que atua com a questão antirracista quanto a estética e beleza—trabalha como designer gráfica em diversas ONGs do Rio de Janeiro.

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